segunda-feira, 25 de março de 2013

Família


 
Família não é apenas sangue, não pode ser algo assim tão simples, já que nesse arranjo desarranjado e até meio arbitrário de consoantes e vogais cabe o incomensurável. Família não é, simplesmente, aquela que nós ver nascer é sim essa que nos faz querer viver. Viver, acreditar e lutar sempre. São aqueles que vamos encontrando pelo caminho e agregando aos nosso planos e sonhos e mal conseguimos acreditar que eles não estiveram ali sempre. Também nos agregam, nos carregam e dividem os seus projetos futuros e imediatos conosco, a ideia de estarmos juntos daqui há uma década ou dali há alguns poucos dias para tomarmos um café no meio de uma tarde chuvosa ou todas as cervejas do mundo em um sábado à noite, que não teria o mesmo significado se não estivéssemos juntos, diante de todas as misérias e belezas do mundo. Família de verdade pode até não ter nos conhecido na infância, mas com toda a certeza estará ao nosso lado na velhice. A família é formada por aqueles que não precisamos chamar, pois vão chegando no decorrer do dia, da semana, do mês ou da vida na hora exata e se encaixam perfeitamente ou quase as nossas existências tão pragmaticamente complicadas, exaustivas e muitas vezes até solitária. Embora, assim que a família se faça presente, e isso acontece o tempo todo, a solidão vai se desfazendo e outras matizes surgem abruptamente em nós engendrando novas histórias. Claro que dentro da família, também, ocorrem brigas, desentendimentos e pequenas ou gigantescas rupturas, já que algumas vezes existem arestas que não podem ser aparadas momentaneamente ou pelo resto de nosso dias. E aí, somos tomados por um sentimento de dor e impotência que não deveria existir no meio da família, porém, existe e isso apesar de apartar-nos de alguns, e muitas vezes nos dilacerar por dentro, não nos faz ser menos família. Mesmo quando a cisão é irrevogável, o que foi compartilhado em determinado momento obrigatoriamente ainda nos faz e fará família. Sim, pois quando somos mesmo uma família automaticamente repartimos as nossas almas com tudo aquilo que é luz e o que é duro, cheio de espinhos e cinzas também. Uma vez que, ao lado da família os medos desaparecem. Inclusive o medo de causar medo a alguém.  Então, família é esse pertencer sem papel, sangue, maternidade ou paternidade. Nos faz entregues sem haver nada nesse mundo que nos obrigue a isso a não ser a própria vontade de fazê-lo, já que não há médico, advogado ou juiz capazes de tornar-nos ou não uma família de verdade. Procurei uma palavra que se adequasse a todas essas conjecturas e definisse essa ideia de família e apesar da obviedade e, também, da cafonice não encontrei outra melhor do que “amor”. Um amor que acontece, simplesmente, acontece. Pois, ser família de verdade não é nascer família e sim tornar-se família e nada mais.

domingo, 17 de março de 2013

Não há graça...



Quando surgiu o bordão “Um tapinha não dói, só um tapinha...”, apesar de tudo que estava implícito e explícito na tal música, muita gente ainda tentou defendê-la dizendo que aquilo não passava de uma simples brincadeira. Pensando nisso, lembrei de um amigo que sempre diz que “toda brincadeira tem um fundo de verdade”, ou seja, o que é dito em tom ou forma de uma “brincadeirinha inocente” na verdade serve para desescamotear os preconceitos (tantas vezes velados) de quem faz a tal “brincadeira” e, também, de quem se diverte com a mesma. Não consigo entender a noção de brincadeira da maior parte das pessoas, no entanto, o que ando vendo por aí me assusta bastante. Essa coisa de que é “só uma piada” é inaceitável. O que me parece é que as pessoas andam em um estado tão profundo de letargia que rir dos problemas do outro (não importando-se de qual seja esse problema) as fazem fugir de seus próprios demônios interiores e por isso torna-se válido. Assim, explica-se o gigantesco sucesso dos ditos  stand-up, por exemplo. Não consigo vislumbrar um outro motivo para que um indivíduo pague caro para assistir a um espetáculo de horror como grande parte desses “shows de comédia” e ainda por cima se delicie ao escutar um boçal qualquer humilhando um outro ser humano. Sei que a vida está cada vez mais difícil para todo mundo, porém, essa com toda a certeza não é a melhor saída. Claro que é ótimo rir de uma boa piada, entretanto, uma boa piada não pode ser ofensiva, vexatória, machista, sexista, homofóbica ou difundir qualquer tipo de preconceito por aí. Eu disse qualquer tipo, ok?! E caso os pretensos humoristas de plantão considerem complicado fazer piadas “politicamente corretas”, que procurem outra profissão, pois essa concepção só demonstra a sua inaptidão para seguir adiante no humor. Em relação a ser chamada de chata ou politicamente correta, não dou a mínima. Até considero isso um elogio e, portanto, agradeço! Acho que devemos cada vez mais alargar o nosso olhar crítico em relação a nossa sociedade e isso também implica em refinar o nosso senso de humor. Já que rir de tragédias ou de piadas vazias e preconceituosas só revela a gigantesca pobreza cultural e as inúmeras falhas de caráter de todos nós. Abaixo, o link para um documentário extraordinário que discute de maneira maestral essa questão que deve ser debatida de forma séria, cada vez mais. (CM, 17 de Março de 2013, Verão)

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Conchas


Ela o viu ainda no ponto de ônibus, pela janela cheia de fuligem da lotação que estava atrasada, quebrando o seu quase transe devido ao cansaço e ao tédio matinal. Na hora, lembrou-se perfeitamente de quem se tratava e de tudo o que havia acontecido tantos anos antes. Entretanto, preferiu fingir que não o conhecia e ficou parada em seu banco como um caramujo em sua concha rezando para não ser apanhada de surpresa por qualquer gentileza. Um caramujo fechado e acanhado, escondido e apartado do resto do mundo. Porém, na hora de descer da lotação o inevitável aconteceu, eles se entreolharam. Era nítido que se reconheciam nesse encontro de olhares. No entanto, não se reconheceram... Então, ela meio que sorriu e entoou uma meia pergunta; apenas o nome do colégio em que estudaram. Ele respondeu afirmativamente, usava mais o queixo do que a voz que saiu em um sussurro. Um silêncio no ar. Tentaram dar casualidade ao tom de voz. Depois, ela disse o nome daquele homem de seus 40 e poucos anos, procurava sustentar um inexistente contentamento em revê-lo. Mas, na verdade procurava o jovem que tocava violão e escrevia poemas há alguns anos atrás. E ele não estava ali. Aí, ele a chamou pelo nome com uma interrogação rudemente ensaiada. Pelo nome todo e não pelo apelido, como antes. Haviam sido próximos, não eram mais. Agora não passavam de dois estranhos, afinal tudo era tão estranho e distante. As tardes de leite com mate na casa daquele chileno, como era mesmo o nome do chileno? Rock and Roll e teatro. O som do violão. Longos e desarrumados ensaios de uma peça que nunca conseguiram montar. Naquela época, o mundo era possível de ser mudado e agora eles pareciam em muitas coisas com os seus pais. Podia ouvir a voz de Elis cantando, “cuidado meu bem, há perigo na esquina...”. Pareciam com os seus pais naquilo que antes criticavam “nos velhos”, nas coisas tristes e sem brilho e, por isso, sofriam e lentamente, desesperadamente tentavam enganar a quem mesmo?! Provavelmente a si próprios. Trancados em uma opaca vida adulta, soterrados por deveres e acorrentados por ilusões e desejos, eles continuam indo e voltando todos os dias enquanto rezam baixinho para não serem incomodados em suas conchas e, assim, arrastam-se sem porto algum. (CM, 17 de Out de 2012, primavera)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Morremos todos nós...



Não morri na madrugada daquele domingo em Santa Maria. Pelo menos não morri sozinha, mas morremos todos nós asfixiados por tanta culpa junto aos 231 meninos e meninas que só queriam se divertir. Assim, como morremos todos nós em Eldorado dos Carajás junto aos 19 integrantes do MST e morremos com os 111 presos do Carandiru, assassinados de forma brutal e covarde pela policia. Morremos, também, com as meninas indígenas obrigadas a vender o seu corpo em São Gabriel da Cachoeira, ou a cada 20 minutos quando uma mulher é estuprada na Índia ou na África do Sul. Morremos com tantas companheiras vítimas do machismo e do descaso das autoridades do mundo e nesses casos por nos calar, também, as matamos. Morremos ao permitir que a reputação de uma mulher ainda seja julgada pela supressão ou não de sua sexualidade, por ainda escutarmos sem gritar que “não” quando alguém nos diz, “que mulher direita não faz isso ou aquilo!”. Morremos juntamente com o ciclista pobre atropelado pelo filho do milionário e morremos com as crianças estadunidense vítimas não apenas de um lunático, mas de todo um sistema político que torna a posse de uma arma mais importante do que a segurança real de seu povo. Morremos com todas as balas perdidas e a negligência médica, com o preconceito, a exploração infantil, o analfabetismo e a homofobia. Temos nossos corpos surrados em meio às luzes das avenidas mais importantes do mundo por termos coragem de amar, simplesmente amar a um igual. Morremos com o preconceito daqueles que se dizem religiosos, mas não sabem amar, compreender ou perdoar. Morremos na Cracolândia ou nas filas de atendimento por uma consulta médica em qualquer cidade do Brasil. Morremos por sermos jovens, por sermos pobres, por sermos negros, por sermos mulheres, por sermos gays, por sermos latinos, por querermos ser livres. Morremos com as balas da polícia, somos todos vítimas do esquadrão da morte e agora, também, das milícias. Morremos ao presenciar o que foi feito no Pinheirinho e em tantos incêndios criminosos em favelas. Morremos com a impunidade, com a corrupção, com o descaso em relação à educação, com a compra de votos e a compra de vagas nas universidades. Morremos nas enchentes do Rio de Janeiro e igualmente morremos na eterna seca do nordeste. Morremos com nossa herança escravocrata e coronelista, sentindo o chicote cortando a nossa carne e o peso de nosso legado racista que ainda olha com desdém para o culto ancestral de nossos deuses africanos e que leva uma criança a pedir a sua mãe para lhe alisar o cabelos, pois esse é “ruim” ou a querer uma Barbie loira como sua “filhinha” na hora da brincadeira. Morremos o tempo todo juntamente com essa sociedade vazia e putrefata que construímos e que agora nos torna reféns, imersos nas “redes sociais”, nos “reality shows”, na absurda necessidade de consumir mais - sempre mais e, assim, morremos sem causa ou motivo real e ao contrário de outros que morreram antes de nós deixando ideias que ainda permanecem, miseravelmente morremos estéreis. (CM, 29 de Janeiro de 2013, Verão)

Agora é pra valer!!!

domingo, 11 de março de 2012

Passadas

  
E passa a mulher, com o seu cheiro adocicado, personagem de García Márquez. Ruidosa e opulenta. Ela era a rainha e não sabia que uma revolução estava sendo ensaiada. Até o dia em que tiraram-lhe a coroa e levaram o seu trono para o estábulo. Deixaram-lhe lá como a senhora única do quase nada. Ela continuou a sorrir, mas não sabia mais o que fazer. Logo ela que havia sido sempre tão inocentemente desnecessária... Antes optara pelo infindável ócio, porém tinha um lugar no mundo dos que produziam. E agora?! A vida era apenas um amontoado de horas que tanto custavam a passar. Tão tola! Continuava a sorrir, quando deveria gritar! Como o animal acuado e ferido que se tornara. Porém, essa lenta agonia não alimentava mais do que algumas passadas pelo reino que lhe arrancaram. No meio daqueles que a olham entre o respeito consagrado aos monumentos e a piedade sordidamente oferecida aos fracassados. Em seus passos pesados carregando o resto de si mesma como um aleijão ou uma velha valise emprestada, ainda vai aos mesmos lugares, nos mesmos dias e horários e traz sempre consigo o perfume do que já passou. Um punhado de flores mortas e um traje de núpcias em uma manhã de luto. Sem ao menos entender o que ocorreu. A rainha continua. Caminha, caminha lentamente com o seu cheiro adocicado, ruidosa, opulenta e desnecessária. Caminha, ainda sem saber, para frente da guilhotina que flameja afiada a luz do sol do meio dia. (C.M. 19 Maio 2010, Outono)                       

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Insônias


E a vida aos poucos volta ao normal e vai ao encontro do comum de si mesma. Sem mais as cores alucinantes das noites de serestas e boemia ou as manhãs melancólicas de sol e preguiça. Só a vida afinal, carregada de sua matéria bruta a sua inequívoca essência: as possibilidades... (C.M. 24 FEV. 2012 , quase fim de Verão)