domingo, 15 de maio de 2011

Dores maiores (ou Pequenas epifanias sobre Thánatos)



 


Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio... (Caio F.)
Quando ela entrou na sala, logo após subir o último lance da escada estreita, sentiu o vago cheiro das lembranças se dissipando pelo ar. Não se lembrava ao certo de quando havia estado lá pela última vez, mas certamente tinha sido há muito tempo atrás ou talvez nunca houvesse entrado naquela sala antes. Não era o mofo ou o pó que lhe transportavam para um tempo já há muito esquecido e sim as três figuras esquálidas lá colocadas por alguma força estranha como em uma perversa brincadeira do destino. E agora eram quatro mulheres perdidas entre lágrimas em um estranho monólogo. Sentia-se em um palco em que a plateia estivesse vazia.                                                                              
A mulher mais velha possuía o tom grave das sacerdotisas africanas e tantas linhas no rosto, entristecido por anos e anos de verdadeiras misérias e falsas alegrias, que além de compaixão também despertava a curiosidade da mais nova. Essa, ainda encarava a vida como um emaranhado de caminhos confusos e possibilidades nem sempre felizes, tentava enxugar as lágrimas da outra sem se ater, pelo menos naquele momento, a suas indóceis dores.                                                                                     
Havia mais duas outras mulheres na sala, ambas de meia idade, porém eram criaturas muito diferentes. A primeira estava quieta e fazia calmamente a sua refeição, para ela a vida se resumia em pequenas migalhas e sobras da vida alheia. Nada tinha de verdadeiramente seu e talvez por isso mesmo não cobrasse nada da vida, nem ao menos tinha necessidade de vivê-la. Já a outra, falava de maneira confusa e quase desesperada, tentando atrair o mínimo de atenção para sua vida solitária, por isso tentava enfeitar suas memórias com momentos inventados na intenção de atrair os olhares da moça mais jovem.                                                                                                                                                        
O assunto entre aquelas quatro filhas de Eva era a morte. Não apenas Thánatos simplesmente, mas o nunca mais, o fim derradeiro, perdas irreparáveis e tudo aquilo que destroem as aspirações a deuses dos homens e revelam a fragilidade e mediocridade humana. E quando nada mais pode ser feito e a aceitação, desumana por de mais, ainda não é possível à única coisa a fazer e tentar verbalizar o indizível, sem importa-se em ser escutado ou não. Assim, como em um grandioso sabá as quatro mulheres iam chorando suas dores, confessando seus crimes e perdoando-se mutualmente enquanto o cheiro das lembranças continuava impregnando no ar.                                                                   
Do lado de fora, a aparente normalidade imperava naquela pacata rua, em uma manhã de outono perdida dos calendários e ainda iluminada por migalhas de sol; um sol tão parco e frio como as esperanças desfeitas das quatro Ariadnes abandonadas em Naxos, entregues a sua própria sorte e incapazes de salvar-se. Elas nada podiam fazer naquele momento e sabiam bem disso, talvez por isso se contentassem apenas em falar. É claro que em poucos minutos o ritual seria desfeito e tudo o que aconteceu naquela sala seria varrido para debaixo do tapete da memória e aquelas lembranças assim como, a vontade de gritar compartilhada pelas quatro sacerdotisas, seria extirpada pelo tempo e elas voltariam a aparente normalidade mascarada e a verdadeira dor. (C.M, 15 Maio 2011. Incrível, mas ainda é Outono!)