sábado, 1 de outubro de 2011

MURAR O MEDO (Texto completo)


O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.
O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. Para responder às novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de investimento divino, precisamos de intervenção de poderes que estão para além da força humana. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente limiar de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas incomodas como estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Num planeta que imaginamos como uma única aldeia, a realidade mais globalizada é a miséria.
O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. Não há aqui nenhum laivo de feminismo, nenhum paternalismo dos que dizem cuidar dos chamados grupos vulneráveis. A verdade é que sobre metade das pessoas que estão nesta sala pesa uma condenação antecipada pelo simples facto de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas aprendemos a reduzir os sonhos e esperanças para um tamanho aceitável. Acerca dessa histeria colectiva, Eduardo Galeano escreveu o seguinte:
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.
E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

(Mia Couto)

Um dia de sol e um copo d’água ou Divagações sobre o talvez...

Naquele momento, ela sentia uma necessidade quase plausível de fugir, partir para o mais longe que pudesse. Um lugar em que ele não pudesse encontrá-la novamente. Tudo entre eles estava muito bem! Amavam-se. Quase sempre se entendiam, também, eram amigos, amantes, parceiros e estavam juntos. Muito juntos, há alguns meses; o que alimentava algumas expectativas por parte dos mais próximos.
E era justamente aquela aura de perfeição que a enlouquecia, desestabilizava-a. Ele não era o seu primeiro ou segundo grande amor, nem tão pouco uma daquelas paixões avassaladoras, que mantinham sua garganta seca e seus olhos úmidos. Era sim um homem comum: trabalhava, estudava, lia jornal, gostava de futebol e de beber com os amigos em noites ermas. Esquecia fatos, nomes e datas que considerava irrelevantes, porém, eram fundamenteis para ela. Mas, fora isso, segurava firme em sua mão e, às vezes, com ternura e outras com desejo abraçava-a enredando-a em uma atmosfera de felicidade que beirava o divino.
O mais tortuoso era que a latente necessidade de fuga vinha acompanhada de outra mais visceral que era a da presença e a do afeto dele; com seu olhar por vezes perdidos e sua voz quase infantil. Ela precisava-o e, também, o queria longe. A única coisa a perceber-se é que longe ou perto: o queria.
Os dois não se conheciam há muito tempo, entretanto a calma que habitava nesse enlace era já muito e muito antiga. Dentro das despretensiosas conversas na estreita cama cercada por paredes brancas ou no banco de alguma das tantas conduções que precisavam pegar diariamente, entendiam-se com perfeição mesmo quando descordavam. E até mesmo em meio ao silêncio entrelaçavam-se. Tudo na mais perfeita ordem! Em uma calmaria outonal...
Talvez, fosse essa estranha e refinada sintonia que a perturbava tanto! Logo ela, tão acostumada ao conturbado: lágrimas e juras desfeitas. Via-se agora a navegar, segura, por um infinito mar de águas tranquilas a caminho de um por do sol muito dourado e isso a desesperava.
Fora isso, já havia percebido há algum tempo que dessa vez não podia controlar a situação e muito menos prever os acontecimentos vindouros. O que é que vem após o ‘felizes para sempre’?! Inquieta, indagava-se. Porém, não havia resposta alguma.
E por isso, o fim parecia ser mais fácil, já que a esse ela conhecia muito bem! Essa dor era sua conhecida, ao contrário da continuidade inusitada e, deste modo qualquer sofrimento era preferível e menos sofrível a aquela alegria, tão estranha a seus olhos.
Talvez, por isso tinha tanto medo de ficar com ele. Talvez, por isso tinha tanto medo de perdê-lo. E, talvez, por esses tantos medos o, então, inesperado veio chocar-se a estável rotina estabelecida. E de uma hora para outra o vento que soprava brandamente encheu-se de uma descomunal força de levante e começou a levar todas as dúvidas que habitavam o seu mundo para o mundo que dantes eles contemplavam tranquilos. Já não mais concordavam ou mesmo conseguiam dizer-se como antes. Agora, um distanciamento crescente nas proporções de um buraco negro primordial entre aqueles dois amantes, tão próximos, tão sólidos. Assim, as conversas vinham inundadas por silêncios e quase soluços e uma nova dor a qual nem mesmo a ela era familiar tornara-se sua nova companheira. Em vão, ela tentava recordar-se do momento exato em que tudo começara a mudar, não conseguia. Em vão, ela tentava encontrar um ponto de equilíbrio em meio aquele turbilhão que sua vida se tornara, não encontrava. Em vão, ela tentava reatar o que se quebrara, não sabia como.
Mais uma vez, sentia-se só e perdida, no entanto, dessa vez havia uma diferença peculiar que a estraçalhava sem que ao menos ela pudesse identifica-la.
Talvez, deve-se isolar-se. Talvez, deve-se procurá-lo e dizer tudo o que sentia. Mas, sabia que aquela força aninhada entre sua cabeça e sua garganta não romperia para fora de si, pois aquele emaranhado de pensamentos difusos e desconexos era seu demais para mostrar-se a quem é que fosse. Assim, ela ia aos poucos compreendendo o quão inútil era debater-se. Tinha a nítida sensação de estar afogando-se e sabia que ninguém poderia salvá-la.
Não havia respostas para tantas perguntas em nenhum dos tantos livros que lera ou mesmo nos filmes ou músicas os quais tanto amava. Apenas mais e mais perguntas surgiam em sua cabeça, então, era apenas isso...?! A paz antes tão assustadora fora suspensa e em meio a uma nova guerra ela capitularia e como o Minotauro de Borges simplesmente aceitaria o seu destino.

(CM, quase Primavera em 2011)

Amanhecendo ou fim de agosto

Ela já estava ficando irritada! Faziam mais de cinco minutos que tentava abrir a porta sem sucesso algum. Do outro lado do quarto, ele ressonava. Havia parado de roncar, como fizera a noite toda, mas com toda a certeza ainda dormia. Enquanto ela mexia nervosamente a chave girando-a de um lado para outro. O movimento foi ganhando força até que a tramela da porta soltou-se e caiu no chão. Nessa hora, ouviu-se o barulho do metal batendo agudo no piso e ele automaticamente começou a repetir em uma voz quase inteligível: “para a direita!”, “vira a chave para a direita e gira, também, a tramela!”                                                                                                                                 
Ela suspirou fundo e num fio de voz, que não conseguia esconder sua irritação, disse: “eu não consigo...” Ele meio que contrariado, levantou-se da cama com um salto, foi até a porta e com um movimento simples abriu-a, balbuciando um “bom dia!” insólito, o qual ela nem se deu o trabalho  de responder.                                                                      
E como quem acabara de acordar de um sonho ruim, saiu caminhando apressadamente para a rua. Não sabia exatamente o porquê, mas precisava do sol e de tudo mais que formava o mundo lá fora como nunca precisara antes. A noite havia sido toda ela uma promessa interrompida. No sábado, quando chegara ali, ela realmente acreditava que tudo que eles necessitavam era um do outro e de tempo para estarem juntos.                                                                                                                       
Mesmo sendo tão diferentes, os dois se amavam. E isso era o mais importante! No entanto, o que se deu depois mostrou o quanto ela estava enganada.                                      
Ainda o amava e apesar de tudo, sentia-se correspondida. O amor ou o desamor não era o problema entre eles e sim as formas tão desencontradas de amor. Sim, eles realmente eram muito diferentes e amavam-se de formas imensamente distintas. O que não significava amar demais ou amar de menos, mas apenas amar de maneira própria.                      
No início, talvez pelo encantamento natural que o amor causa nos seres humanos ou talvez por mera distração, quem sabe, nenhum dos dois deu-se conta disso. A única coisa que perceberam-se é que eram humanos e que sorriam mais quando estavam um ao lado do outro ou que no meio da tarde quando o sol começava a recolher-se lembravam-se mutualmente e ainda que encontravam-se em letras de músicas ou trechos de velhos poemas.                                                                                                           
Porém, pouco a pouco foram intimizando-se. E começou a acontecer o que sempre acontece com seres distintos que apesar de suas inúmeras diferenças ousam amarem-se. Então, longas conversas a respeito de desapontamentos, frustrações e mágoas profundas tomaram o lugar dos risos, dos pores do sol e da poesia.                                  
Agora, agiam como pássaros com as asas cortadas que apesar de quererem voar não mais conseguiam... E mesmo se pudessem voar para onde iriam? Por mais atraente que o céu apresentava-se, existia algo ali que competia com todo o azul infinito e misterioso. E por isso, não conseguiam soltar-se, entretanto ainda precisavam de mais do que aquilo que um podia dar ao outro.                                                                                  
Fora isso, havia a sensação de estarem permanentemente em crise. Submersos em uma espécie de substância espessa e lodosa que possuía vida própria e por mais que tentassem não conseguiam desvencilhar-se desse estranho pântano.                                     
 Tudo agora era um céu muito escuro de uma noite sem luar ou ao menos alguma estrela distante apontando o caminho. Já era quase inicio de setembro e aos poucos todo amor ia escapando e esvaindo-se no ar de forma brutal e desesperada. E, talvez, por todo o desespero que os inundava já não conseguiam vislumbrar mais por quanto tempo ainda seriam eles dois.
(CM, ainda é Invernos em 2011)

O escritor, moçambicano, Mia Couto nas Conferências do Estoril 2011: Murar o medo.