domingo, 3 de fevereiro de 2013

Conchas


Ela o viu ainda no ponto de ônibus, pela janela cheia de fuligem da lotação que estava atrasada, quebrando o seu quase transe devido ao cansaço e ao tédio matinal. Na hora, lembrou-se perfeitamente de quem se tratava e de tudo o que havia acontecido tantos anos antes. Entretanto, preferiu fingir que não o conhecia e ficou parada em seu banco como um caramujo em sua concha rezando para não ser apanhada de surpresa por qualquer gentileza. Um caramujo fechado e acanhado, escondido e apartado do resto do mundo. Porém, na hora de descer da lotação o inevitável aconteceu, eles se entreolharam. Era nítido que se reconheciam nesse encontro de olhares. No entanto, não se reconheceram... Então, ela meio que sorriu e entoou uma meia pergunta; apenas o nome do colégio em que estudaram. Ele respondeu afirmativamente, usava mais o queixo do que a voz que saiu em um sussurro. Um silêncio no ar. Tentaram dar casualidade ao tom de voz. Depois, ela disse o nome daquele homem de seus 40 e poucos anos, procurava sustentar um inexistente contentamento em revê-lo. Mas, na verdade procurava o jovem que tocava violão e escrevia poemas há alguns anos atrás. E ele não estava ali. Aí, ele a chamou pelo nome com uma interrogação rudemente ensaiada. Pelo nome todo e não pelo apelido, como antes. Haviam sido próximos, não eram mais. Agora não passavam de dois estranhos, afinal tudo era tão estranho e distante. As tardes de leite com mate na casa daquele chileno, como era mesmo o nome do chileno? Rock and Roll e teatro. O som do violão. Longos e desarrumados ensaios de uma peça que nunca conseguiram montar. Naquela época, o mundo era possível de ser mudado e agora eles pareciam em muitas coisas com os seus pais. Podia ouvir a voz de Elis cantando, “cuidado meu bem, há perigo na esquina...”. Pareciam com os seus pais naquilo que antes criticavam “nos velhos”, nas coisas tristes e sem brilho e, por isso, sofriam e lentamente, desesperadamente tentavam enganar a quem mesmo?! Provavelmente a si próprios. Trancados em uma opaca vida adulta, soterrados por deveres e acorrentados por ilusões e desejos, eles continuam indo e voltando todos os dias enquanto rezam baixinho para não serem incomodados em suas conchas e, assim, arrastam-se sem porto algum. (CM, 17 de Out de 2012, primavera)